Meu pai adorava futebol. São-paulino ferrenho, era daqueles que levava radinho de pilha no estádio, organizando um pequeno espetáculo áudio-visual particular a cada partida.
Torcedor típico, discutia semanalmente a pauta futebolística nas mesas redondas não oficiais dos botecos da vida. Até hoje não entendo direito o que fez ele abrir mão da principal tradição do esporte bretão em nosso país, a missão de fazer o filho torcer para o mesmo time do pai.
O torcedor, realmente, leva isso à sério. É tão explícito que vale até usar de artifícios pouco lícitos.
Como no caso de um amigo que, diante da forte campanha da família da esposa em convencer o herdeiro que sair abraçado com um monte de gente e ficar gritando “AQUI TEM UM BANDO DE LOUCO…” seria uma ideia interessante, não teve dúvidas; chamou o garoto de canto e ofereceu uma bicicleta novinha, bastava torcer para o São Paulo. Funcionou.
Um colega de redação resolveu se antecipar ainda mais. Esposa grávida, quando perguntado se já sabia o sexo da criança que estava por vir, foi categórico:
— Ainda não, por enquanto sabemos apenas que é santista.
Essa é a energia da coisa. Passar o “manto sagrado” adiante é uma missão.
Mas, na época, não foi dessa forma que meu pai enxergou.
E olha que nem estava assim tão difícil. Minha mãe não liga para futebol, a concorrência ficava restrita a campanhas frágeis e sem fôlego de um ou outro tio. Com três filhos homens (minha irmã viria só depois) era só não dar bobeira que, facilmente, uma pequena torcida organizada tricolor se formaria no fundo do quintal de casa.
Mas eis que um dia minha mãe apareceu com três camisetas, uma de cada time: São Paulo, Santos e Corinthians. Para a minha mãe era tudo a mesma coisa. Meu pai, num lapso de sentimento democrático e doutrinação zero, não se importou. Cada um que ficasse com a que gostou mais. Diz a lenda que, anos depois, esse sentimento democrático ele mesmo classificou como “deu bobeira”.
O resultado, claro: Meu irmão que pegou a do São Paulo, é são-paulino roxo; o que pegou a do Santos, é santista roxo; e eu, que peguei a do Corinthians… não ligo pra futebol.
Pois é, não entendo lhufas. Nunca consegui gostar. A única vez que coloquei uma camisa de time e fui para a avenida comemorar a conquista do campeonato foi para tentar me aproximar de uma garota. Na época eu era uma espécie de “são-paulino não praticante”, ou algo assim. Corinthians campeão. Não tive dúvidas, coloquei a camiseta alvinegra, enfiei um capacete na cabeça e saí buzinando e gritando “Timãããão” pela avenida. Tudo isso só para ter a garota corinthiana na garupa da moto. Não me orgulho, mas também não me arrependo.
Não gostar de futebol no país do futebol tem seus problemas. É um assunto coringa, que une completos desconhecidos. A única pergunta que alguém que você nunca viu na vida faz sem qualquer hesitação é “Quanto ficou o jogo?”.
Funciona como um sinal de aproximação. A pessoa está afim de conversar, não te conhece direito e joga a frase como sinal de cordialidade, mostra que foi com a sua cara.
Esbanjando a inocência dos mais novos, já caí na besteira de responder com um “Que jogo?”
Acredite. Encerra-se ali a relação de respeito. Alguns até se irritam, achando que você está de sacanagem.
Não existe falha maior no mundo do futebol do que não saber QUAL É O JOGO da pergunta “QUANTO FICOU O JOGO?”.
Hoje, mais maduro, me limito a responder um “Ixe… Sei não.
Meu filho também não gostava de futebol. E nem foi por interferência direta minha, não. De certa forma eu acho até bonito a emoção estampada no rosto do torcedor depois de um gol improvável aos quarenta e cinco do segundo tempo. É um troço genuíno.
Já que não tinha muito a ver EU passar essa coisa de “manto sagrado” pra ele, deixei a tarefa para meu pai e meus irmãos mostrarem esse lado da cultura brasileira que, pra mim, nunca fez muito sentido.
Com avô, tio e tia são-paulinos… o tio santista não teve a menor chance. Quando pequeno usava a camisa do São Paulo nos domingos de churrasco e rodada decisiva. Parecia que tudo estava resolvido. Mas foi crescer um pouquinho para ficar claro que ele também não dava a mínima. A verdade é que a trupe tricolor lá de casa também fracassou miseravelmente na missão de passar o “manto sagrado”.
É algo que, simplesmente, nunca funcionou com a gente.
Lembro de uma propaganda na televisão, acho que era por causa da copa, onde a chamada era “IMAGINE UM MUNDO SEM FUTEBOL”, aí apareciam várias cenas com gente desmotivada, sem graça… Uma tristeza. Ian virou pra mim e disse:
— Pra gente não ia mudar nada. Né, pai?! — Ele sempre terminava com esse “né, pai”.
Caí na gargalhada. Brincamos um pouco sobre a nossa assumida falta de interesse no assunto e depois começamos uma brincadeira de coisas aleatórias que REALMENTE fariam falta em nossas vidas, caso nunca tivessem existido.
Gibi. Puts, não ia dar pra viver num mundo sem gibi. O Senhor dos Anéis, com certeza também merecia um lugar de destaque ao lado das coisas que deixavam o nosso mundo um pouco melhor.
A lista foi aumentando: Harry Potter, a trilogia De volta para o futuro, Matrix, mas só o primeiro, os outros nem tanto. O incrível mundo de Gumball, Hora de Aventura, Apenas um Show, Totoro, Dragon Ball. Não podia esquecer os Games, claro
Até a CCXP entrou na lista de coisas que deixariam o nosso mundo um pouco menor se nunca tivessem existido.
Um infinidade de coisas. Compartilhávamos do mesmo universo. O mundo das histórias, da fantasia, da leitura e da imaginação. Esse era o nosso “manto sagrado”.
Nunca senti a emoção de levar meu filho para ver uma final de campeonato com estádio lotado e vibrar com a galera enlouquecida, mas fomos juntos conhecer pessoalmente, sentar na mesa e ficar uma hora batendo papo com o criador da Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali. Vou te contar… Até o Maracanã ficou pequeno.
Haaaaaaja coração!
PS: A corinthiana da garupa também estava lá. ;)
(PALAVRAS CHAVE: nerd - futebol - maurício de sousa - pai - filho - manto sagrado - torcida - camiseta - time - ccxp
Este texto foi originalmente publicado na newsletter Entre uma coisa e outra