20 de abril de 2022

Na minha cabeça mora um pequeno Angeli

Alguns artistas passam a vida correndo na frente. Saem em disparada e o resto que lute para tentar, pelo menos, não perder eles de vista. São a referência, aqueles que ditam o caminho de quem vem atrás. Angeli é um desses. Sinceramente, não tivesse conhecido a Chiclete com Banana lá nos anos oitenta eu nem sei se estaria aqui fazendo o que faço hoje. Aquilo me contaminou de uma forma tão intensa que, de uma hora para outra, ler já não era mais suficiente, queria fazer parte daquilo. Criava histórias em um caderno, que eram lidas por amigos de escola, de mão em mão. Não pensava em sucesso, conquistar isso ou aquilo… Só queria fazer parte daquele grupo de pessoas que contam histórias em quadrinhos.

Não demorou e, aí sim, comecei a publicar profissionalmente. Fazia tiras para um jornal. Humor de comportamento, claro. Igual a que lia na Chiclete. Desconhecendo qualquer fundamento técnico ou coisa do tipo para saber se o que eu fazia era bom, estabeleci um critério pessoal de avaliação. Perguntava pra mim mesmo:

- Daria para publicar na Chiclete com Banana?

Algumas vezes achava a tira boba demais (não era digna da Chiclete), aí tentava e tentava… Até chegar em algo minimamente razoável e que eu conseguia, pelo menos em meus sonhos, ver ocupando espaço nas páginas da revista. O critério funcionou, já que publiquei a tira durante mais de vinte anos.


Quando comecei a fazer charges não foi diferente. Angeli colecionou dezenas de troféus como melhor chargista, e não é por menos. Ele é simplesmente genial (nisso também). Fazia o tipo de charge que não se presta ao ridículo de ser só engraçadinha. Porém, também não se limitava a crítica pela crítica. Tinha sempre uma sacada inteligente, um desenho matador…Muitas vezes eu lia uma notícia e surgia uma piadinha óbvia na cabeça. Fazia o esboço, olhava o conjunto... Tudo certinho e engraçadinho. Certeza que o editor iria aprovar e os leitores iriam rir… Aí lembrava das charges do Angeli. Dava até um pouco de vergonha. Como se um pequeno Angeli começasse a falar na minha cabeça:

- É isso mesmo? Sem crítica, sem porrada… O cara é um fila da puta e você vai publicar só uma piadinha besta sobre o assunto?

Já descartei várias ideias por conta disso. Me obrigava a espremer a cabeça e ver se conseguia cavar mais fundo. Nem sempre saia algo muito melhor que a piadinha, mas em outras valeu demais a pena.Aí vieram os quadrinhos. Eu, com meu traço cartunesco, precisava acertar o meu desenho para histórias mais longas. Só fazia bonequinho narigudo, não servia para o que tinha em mente. Aí, mais uma vez, vem o Angeli. Que também é da casta dos fazedores de bonecos narigudos, mas desenvolveu um traço sujo, cômico e, ao mesmo tempo, dramático. Foi, de novo, uma das minhas principais referências gráficas. “Como o Angeli desenharia isso?” era uma pergunta recorrente.

A essa altura do campeonato o pequeno Angeli que mora na minha cabeça  já era quase um editor pessoal. Não perdoava.

 - Tudo isso é medo? Deixa de ser bundão. Bota pra foder nesse negócio aí, pô! 

E lá ia eu tentar cavar um pouco mais, chegar um pouco mais longe na solução gráfica, na ideia, na narrativa…


Hoje fiquei sabendo que o Angeli encerrou sua carreira de cartunista por conta de uma doença. Afasia. A mesma do Bruce Willis. Foda!Mesmo o Angeli tendo feito pelo quadrinho nacional mais do que 90% de todos os quadrinistas juntos, mesmo se a gente viver até os noventa e com a saúde intacta, não deixa de ser uma notícia triste.


Obrigado, Angeli.

Todos nós desenhamos e criamos um pouco melhor só por ter você sempre na nossa frente.